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Entre Teoremas e Chocolates: Um Livro, Um Amigo 5 - A Boca do Inferno

terça-feira, abril 15, 2008

Um Livro, Um Amigo 5 - A Boca do Inferno


Numa altura em que muito se discute o presente e o futuro do meu clube, o Benfica, decidi destacar aqui um livro de um grande benfiquista, o Ricardo Araújo Pereira. Foi-me oferecido recentemente (merci!) e já o "devorei". É uma recolha das crónicas que ele tem escrito semanalmente para a revista visão ao longo dos últimos anos. É mais do mesmo, mas em grande quantidade: uma dose maciça do humor a que ele já nos habituou. Percorrendo temas desde a política, passando pelo desporto, e indo até aos temas quotidianos e completamente desinteressantes, o livro é descrito na contracapa como sendo «um livro essencial para compreendermos o nosso tempo, especialmente a parte da tarde»! Eu gosto da ironia inteligente de RAP e acho que ele e os outros gatos, recorrendo à ironia, têm feito mais oposição construtiva do que alguns partidos que por aí andam. Para dar um cheirinho daquilo que se lê neste livro, deixo aqui uma crónica escrita em 2005, mas com um conteúdo actual:


«Ser do Benfica: manual de instruções

O Benfica tem boas hipóteses de ser campeão este ano, e eu confesso que não consigo pensar noutra coisa. Devo acrescentar que, mesmo quando o Benfica não tem hipóteses nenhumas de ser campeão, eu não consigo pensar noutra coisa. Mas estou longe de ser um fanático, atenção. Detesto fanáticos do Benfica. São insuportáveis. Os fanáticos acham que o Benfica é o melhor clube do mundo. Um benfiquista a sério pensa de outro modo: não é uma questão de achar: nós temos a certeza de que o Benfica é o melhor clube do mundo. Os fanáticos são uns maricas.

Um benfiquista a sério continua a acreditar na conquista do campeonato mesmo quando já não é matematicamente possível. Porque é que há-de ser a matemática a ditar a possibilidade de se se campeão? E porque não a literatura? O título pode ser matematicamente impossível, mas, ainda assim, literariamente possível. O que impede uma equipa que esteja a liderar o campeonato num determinado momento de abdicar do título a favor do Benfica, por ser a equipa que pratica melhor futebol e veste o equipamento mais bonito? Nada.

Um benfiquista a sério tem aspirações irrealizáveis. Um sportinguista a sério quer que a equipa do Sporting jogue bem. Um portista a sério quer que a equipa do Porto seja aguerrida. Um benfiquista a sério quer que a equipa do Benfica seja «o Benfica». E ser «o Benfica» é quase impossível - especialmente para o Benfica. Isto porque um benfiquista a sério é seriamente doente. O Benfica bem pode ganhar um jogo por quatro ou cinco, que nós saímos da Luz a dizer: «Não jogamos nada, pá.» Isto é, evidentemente, um elogio. É por isto que nós somos o Benfica. Não nos contentamos com sermos os maiores. Sabemos que podemos ser ainda melhores do que aquilo. Podemos ser «o Benfica». E temos todas as condições para sê-lo, uma vez que, curiosamente, já somos o Benfica. Não sei se me faço entender. É provável que não. Eu próprio estou um bocado à nora.

Um benfiquista a sério exige aos jogadores que sejam mais do que são. Exige ao Simão que seja o Simão e que, além disso, tenha a imaginação do Chalana e a garra do Simões; exige ao Manuel Fernandes que seja o Manuel Fernandes e que tenha ainda a força do Coluna e a visão de jogo do Shéu; e exige ao Paulo Almeida que vá para casa e não saia de lá. Um benfiquista a sério é bastante cruel. A não ser que o Paulo Almeida marque três golos ao Porto. Nessa altura o Paulo Almeida fará o que quiser de um benfiquista a sério.

E um benfiquista a sério é um benfiquista a sério. Não é simpatizante do Benfica. O Benfica não desperta sentimentos menores, como a simpatia. Só gera de amor para cima. E é um amor exclusivo. Lembro-me de, um dia, ter tido esta conversa com o meu pai:

Ele: Más notícias, filho. Quando vínhamos para casa, a seguir ao empate do Benfica, a tua mãe caiu e partiu os dois braços e as duas pernas.
Eu: Eh pá, não acredito. O Benfica empatou?

Claro que isto nunca aconteceu. É um exagero que eu uso aqui com fins estilísticos. A minha mãe tinha partido os dois braços mas só uma das pernas. Estava óptima. Apesar disso, este tipo de atitude tem-me causado dissabores ao longo da vida. Eu sei perfeitamente que nunca serei o filho preferido da minha mãe. E eu sou filho único, portanto vejam bem o que isto faz a uma pessoa. »

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